quinta, 26 de dezembro de 2024
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A Morada do Anjo

Cantigas de Roda – quase não se vê e não se ouve mais. Que pena… A chamada “modernidade”, racional e insensível, está extinguindo-as, como a tantas outras manifestações folclóricas, naturais…

Cantigas de Roda – quase não se vê e não se ouve mais. Que pena…
A chamada “modernidade”, racional e insensível, está extinguindo-as, como a tantas outras manifestações folclóricas, naturais e de um tempo onde o maior criador de seus brinquedos e folguedos eram as próprias crianças. Claro que não é culpa delas; muito maior é a nossa.

Dessas Cantigas, uma das mais conhecidas na minha infância era aquela: “… dentro dele, dentro dele mora um anjo, que roubou, que roubou meu coração!”

Esses dias, no aniversário de uma criança, para minha surpresa, ela foi cantada; ao ouvi-la, lembrei-me de um amigo: o Luiz, de Campos Gerais, cidade do Sul de Minas, 30 km de onde nasci.
Conheci-o em um barzinho daquela cidade, onde alguns amigos e eu íamos nos preparar “psicoalcoologicamente” para um baile. Magro, pelos trinta anos, barba por fazer, palavras já meio enroladas, e gestos típicos de “halterocopista” costumeiro. Um “bebum”, pensei comigo.

O papo rolou livre, leve e solto e,embora tudo fosse festa, o Luiz se mantinha meio calado.
Não nos acompanhou ao baile, mas ofereceu-nos, e aceitamos, dormir em sua casa.
Dançamos e curtimos a noite toda; moídos, rumamos para o endereço dado.

Primeira surpresa: – uma antiga mansão colonial!Pelo horário, trocamos poucas palavras com ele e fomos dormir. Acordamos com o sol já alto. Começamos, a partir daí, a conhecer melhor o Luiz – a segunda surpresa: – tomando café-da-manhã, a conversa tomou outro caminho.

Aparentemente sóbrio,o Luiz discorria, de forma lúcida e culta, sobre vários assuntos.
Modestamente, surpreendia-nos com os seus conhecimentos, expostos sem afetação ou orgulho. Sua erudição fluía de forma calma e natural, mas sem entusiasmo.

Aos poucos fomos conhecendo sua história: filho de fazendeiro tradicional,formara-se em Odontologia; casa-se e, poucos anos depois, separa-se; não perguntarmos o porquê ou como. No momento em que nos expunha isso, sentíser esta a razão da profunda tristeza que seu olhar irradiava, e da bebida, com certeza.

Saciados com um belo café-cura-ressaca, o Luiz nos convidou para dar uma volta na pracinha, que se derramava à frente de sua casa. Domingo, pela manhã, como em toda cidadezinha, a praça estava cheia; a missa das 10h acabara há pouco. Começa uma música na Igreja, através de alto-falantes-corneta, com péssimo som. Os nossos comentários a respeito disso,surgem. Luiz, meio constrangido, concorda e, para nossa estranheza, nos convida para adentrarmos ao belíssimo templo católico. Ao passarmos pela Sacristia, ele troca umas palavras amistosas com o Padre e – terceira surpresa:- toma assento junto a um escultural órgão e inicia a execução de músicas sublimes: -Bach, Schubert, Mozart etc., e uma que se tornou a minha predileta – Tristesse, de Chopin.

O gesto inesperado e a maravilha dos sons e do ambiente nos extasiaram. Luiz se transformou, iluminou-se. Notamos, emocionados, lágrimas brotando-lhe dos olhos. Pelo menos nisso, na emoção e lágrimas, quase o imitamos.

O bebum da noite anterior que conosco se embebedava,de dia nos embevecia com a suas implicidade, sabedoria e sensibilidade.

A mim, especialmente, além da admiração que passei a ter por ele, restou a vergonha de tê-lo julgado, precipitadamente, pela aparência do Homem, ao qual,se propiciarmos oportunidade e sintonia, ele nos mostrará, também, o Anjo que possui dentro de si.

Jesiel Bruzadelli Macedo
Jesielbm@gmail.com

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