sexta-feira, 20 de setembro de 2024
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O fantasma nosso de cada dia

Tarciso tinha dezenove anos. Apesar da pouca idade, já tinha vivido experiências suficientes para concordar com a frase de Hamlet: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio,…

Tarciso tinha dezenove anos. Apesar da pouca idade, já tinha vivido experiências suficientes para concordar com a frase de Hamlet: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”.
Vivia sozinho desde os dezoito anos. Morava em três cômodos, um sobrado em cima de uma casa grande, de propriedade de seu avô Clemente. A casa ficava em uma área grande ladeada por duas outras casas e mais uma ao fundo, mais à esquerda do terreno. A frente era toda murada. Havia um portão grande bem no meio do terreno para entrada de carro. Do lado esquerdo, um pequeno portão para entrada de pessoas.
O jovem Tarciso estudava no período noturno, chegava a casa tarde da noite. Naquela noite, especificamente, chegou por volta das onze e meia. Era costume entrar por aquele portão pequeno que dava acesso, depois de uns dois passos, a uma escada de alvenaria que levava até à porta principal do sobrado.
Todavia, como era de costume, antes de entrar ao sobrado, logo após abrir o portão, não subia a escada, seguia em frente por um corredor que terminava em três degraus, os quais davam acesso a um quintal grande, todo cimentado, bem na entrada da casa do Seu Clemente. Gostava de tomar água fresca no pote de barro antigo de seu avô. Como as noites eram sempre quentes na sua cidade, habituara-se a beber daquela água com temperatura agradável, que descia suave pela garganta, fazendo-o lembrar como as coisas simples podem ser prazerosas.
O fato é que, naquela noite, ao andar pelo corredor e chegar até o quintal da casa de seu clemente, deparou-se com uma cena inusitada. A noite era de lua nova, estava alta e brilhante no céu, como uma luz a iluminar todo o recinto do quintal e, com menos intensidade, a parte interna da área da casa. Lá dentro, havia aquelas cadeiras de alpendre, de gente menos abastada financeiramente, estrutura de ferro transpassada por fios de plástico coloridos. Umas eram verdes, outras vermelhas.
Foi naquele momento que Tarciso, do pé do último dos três degraus, olhou para dentro da área e percebeu o vulto de “algo” ou alguém repousando tranquilamente em uma das cadeiras.
Passou-lhe várias ideias pela cabeça. A primeira delas, subir os degraus de volta e sair correndo em disparada. Subiu-lhe um frio pelo dedão do pé e foi parar no último fio de cabelo que parecia esticado no alto de sua cabeça. Juntou toda a coragem que tinha e olhou fixamente para a cadeira onde estava o vulto. Ele continuava lá, imóvel. Tarciso levantou os braços e acenou, esperando, quem sabe, um aceno de volta. Nada. A sombra na cadeira estava inerte. Olhou para trás mirando por onde ia fugir caso houvesse qualquer movimento daquele ser. Deu mais um passo em direção à coisa e acenou novamente. Nada. Mais dois passos e acenou. Nada, ainda. Repetiu os gestos, enquanto fixava o olhar naquela sombra tentando reconhecer qualquer traço de fisionomia, conhecida ou não. Talvez fosse o medo que lhe diminuísse a visão, pois a dois passos daquilo não conseguia ver nada além de um vulto. Foi quando, com o corpo todo gelado, chegou perto e colou-lhe a mão.
Ufa! Seu corpo todo relaxou. A visão recuperou-se repentinamente. Só assim pode ver o que era aquilo estirado na cadeira de seu avô. Era um tapete enorme enrolado, quase um metro e oitenta de altura. Provavelmente sua avó, fazendo a limpeza da casa, enrolou-o e colocou-o sobre a cadeira e esse acompanhou sua forma. Parecia realmente uma pessoa sentada naquela cadeira, ainda mais no escuro.
Tarciso pensou consigo mesmo: se não tivesse reunido toda coragem para enfrentar seu medo e tivesse fugido no instante em que viu aquele vulto, no dia seguinte, teria jurado que tinha visto um fantasma e comprovado que eles existem.
Assim são criados os fantasmas em nossa vida. Medo todo mundo tem. Alguns conseguem enfrentar seus medos e transformar seus fantasmas em meros tapetes enrolados na cadeira. Outros vão jurar que fantasmas existem e jamais vão beber água fresca.

Sérgio Piva
s.piva@hotmail.com

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