sexta-feira, 20 de setembro de 2024
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Surreal

Assistindo a uma reportagem na televisão ouvi uma expressão que há tempos não ouvia: surreal. Acredito que ela seja usada no sentido literal da palavra, apesar de soar como gíria,…

Assistindo a uma reportagem na televisão ouvi uma expressão que há tempos não ouvia: surreal. Acredito que ela seja usada no sentido literal da palavra, apesar de soar como gíria, com o significado de irreal, absurdo, bizarro, estranho.

Pensando nas palavras que usamos cotidianamente, elas parecem não conseguir mais expressar nosso modo de vida exacerbado. Necessitamos, cada vez mais, de vocábulos que traduzam a grandeza do mundo a nossa volta, talvez porque sempre esperamos que o mundo continue seu desenvolvimento, que na maioria das cabeças deve significar crescimento, aumento proporcional daquilo que parece concreto.

Quase tudo vem aumentando na vida de grande parte das pessoas. As casas cresceram de tamanho. Muitos quartos, se possível cada um com seu banheiro. Aquelas que trinta anos atrás não tinham nem garagem, hoje precisam de espaço para pelo menos dois carros. Você pode estar pensando que isso é para quem pode, sim, mas quem não pode, se pudesse, faria o mesmo. Televisão, de preferência, uma para cada cômodo. Geladeira, muitas residências têm duas. Quantos celulares há numa mesma casa? Pelo menos um para cada pessoa. Até as crianças já têm seu próprio telefone. Um computador de mesa, um notebook, um tablet, pelo menos, podem ser achados no interior das casas. Como costumo dizer, a lista é grande, então, continue com sua própria reflexão.

Imagino que seja por isso, essa “grandeza” das coisas, que as palavras que usávamos não dão mais conta de transmitir a ideia daquilo que existe, Assim, já não dá para falar somente de supermercado, agora tem que ser hipermercado. Não pode ser somente um evento, tem que ser um megaevento. Notebook já era. Agora só ultrabook. As notícias e propagandas estão, necessariamente, recheadas desses prefixos modernos: “mega-“, “hiper-“, “ultra-“. Os produtos também não podem ser mais somente eles, têm que ser “plus”, “master”, “power”, “high”, todos com indicação de serem mais, de melhor, de grandeza e poder. Mesmo que a pessoa não entenda o significado literal dessas palavras, elas trazem um impacto psicológico, como tantos outros vocábulos de uma língua estrangeira que passe a ideia de superioridade. Nosso mercado consumidor atual fala mais “em línguas” do que igreja pentecostal. Podemos falar de quase todo tipo de coisas que precisam mostrar esse crescimento, os carros, as motos, os computadores, os bytes, kbytes, megabytes, gigabytes, terabytes, não-sei-o-que-mais-bytes, indo até, como consequência, o agigantamento dos egos dos indivíduos possuidores dessas “grandezas’.

Contudo, na mesma proporção que as coisas externas cresceram, o que há dentro do ser humano diminuiu, até desapareceu. A única exceção, talvez, seja mesmo o ego. Os valores, alguns sentimentos como bondade, humildade, afetividade, honestidade e todas as outras “dades” positivas que conhecemos muito bem, quase não são mais vistos ou sentidos.

As coisas que estão fora são muitos grandes e em quantidade excessiva para caber em nós e, ao mesmo tempo, ao cabermos nelas, sobra muito espaço vazio. Esse é o sentimento que sobra nas pessoas hoje em dia. Sentimo-nos sós na multidão, de seres e coisas. E isso parece mesmo surreal.

Sérgio Piva
s.piva@hotmail.com

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